Num passado recente

Desde meados dos anos 80 – já depois das grandes movimentações populares que se seguiram ao “25 de Abril” – (ocupações de terras pelos assalariados rurais e camponeses pobres, ocupações operárias de fábricas, ocupações de casas e bairros inteiros vazios por moradores de barracas e casebres, etc.) surgiram aqui e ali fortes movimentos populares “de base” nos quais a presença anarquista só episodicamente se fez sentir -e mesmo assim de uma forma residual e geralmente “camuflada”, não se afirmando como “anarquista” – ou “libertária”. Excepção feita à luta contra a planeada central nuclear de Sayago, na zona fronteiriça de Miranda do Douro, onde, em 1981, anarquistas de vários grupos estiveram presentes, desenvolvendo forte acção de propaganda e divulgação anarquista.
Também em algumas movimentações antinucleares e anti-armamentistas nessa época, grupos libertários marcaram a sua presença – sendo inclusive por vezes alguns jovens anarquistas presos pela polícia – ou ameaçados e agredidos pelos “gardes rouges” dos “patrões” de certos “movimentos populares de base” mais partidarizados…
Em meados dos anos 80, teve especial relevo a luta das populações de algumas zonas do Norte, Nordeste e Sul, contra a eucaliptização intensiva (para a indústria de celulose e pasta de papel) de zonas onde se praticava uma agricultura/silvicultura tradicional (Aboboreira, Valpaços – entre outras), logo integradas – e desviadas e sedadas – como lutas “ambientais” por grupos ambientalistas como a “Quercus” – embora alguns libertários do Norte tenham participado na resistência às cargas da GNR ao lado das populações em revolta. Em Valongo, em 89-90, libertári@s e amigos da Terra Viva, desenvolveram acções de protesto com as populações locais contra a poluição do rio Ferreira e a eucaliptização intensiva das serras de Santa Justa, Pias e Castiçal..
Também na luta do povo de Barqueiros (povoação de Barcelos) contra os “jagunços” da “segurança” da empresa de cal Mibal (ameaçando arruinar a economia agropecuária minifundiária daquela povoação) e contra as cargas da GNR (que mataram a tiro um jovem de Barqueiros numa barricada erguida pela população em revolta), libertári@s do Porto e activistas da Terra Viva tiveram alguma presença, sobretudo na fase final daquela luta, denunciando e difundindo os acontecimentos em meios libertários e alternativos internacionais e contribuindo para uma rede cívica de solidariedade com a população de Barqueiros.
Muitas outras lutas populares locais se seguiram, geralmente por questões ecológicas-sociais (poluição de recursos hídricos – no Norte – Famalicão e Caima – passagens para peões sobre as novas auto-estradas, poluição de fábricas em zonas de habitação popular, no Porto, etc.). Nalgumas dessas movimentações registou-se por vezes a presença libertária mas quase sempre como “solidariedade do exterior” e não como uma presença activista efectiva nessas lutas, do princípio ao fim.
Em Coimbra e noutras localidades, de meados a fim dos anos 90, as populações manifestam-se contra as tentativas do governo de fazer queimar lixos industriais e urbanos em fábricas cimenteiras já por si poluentes – como em Souselas ou S. João da Talha. Alguns libertários participam pontualmente nalgumas dessas movimentações, mas sempre de alguma forma residual apenas.
Em 2001 as populações de Lazarim e Bigorne (região de Lamego) revoltam-se e boicotam as eleições (a exemplo do que vinha acontecendo noutras localidades, quase sempre por motivo de promessas incumpridas pelos políticos, de equipamentos sociais locais). Frente aos planos do então ministro do ambiente, Sócrates, de instalar um “aterro sanitário” (depósito) de lixos numa zona serrana de baldios comunitários, rica em água, necessária à agricultura local, os pequenos agricultores levantam as vedações de demarcação das futuras obras, ocupam os seus terrenos e boicotam as eleições. Fernando Gomes, antigo presidente da Câmara do Porto e novo “ministro do interior” lança a GNR contra as populações (“Operação Jacaré”) e registam-se confrontos. A população de Lazarim ameaça “passar à acção directa” contra a GNR se “o governo não enviar o exército para os defender”. Claro que o exército não vai! Há espancamentos pela GNR – inclusive do presidente da junta de Lazarim – e ameaças de endurecimento da repressão. Já na fase final da luta, alguns jovens libertários de Lisboa (AIT/sp e outros) e jovens e activistas da Terra Viva, do Porto, visitam a zona e inteiram-se dos acontecimentos, solidarizando-se com as populações resistentes locais e difundindo depois a sua luta. Infelizmente perdida – já que o “aterro sanitário” é mesmo imposto à ponta da carabina pelo governo…
Em todas estas lutas populares e em muitas outras que se seguiram (pela habitação popular, contra o racismo, pela solidariedade com os imigrantes, contra a guerra, etc…) foi patente nestes anos a falta da presença consertada libertária, já que a maioria dos vários grupos reclamando-se “anarquistas” ou “libertários” revelaram sempre estar mais interessados em polemizar teoricamente entre si ou na produção literária, cultivando de forma passadista as “glórias passadas, ou na manutenção de um certo “anarquismo de estilo de vida”, fechado em si, do que na ligação aos movimentos populares reais do tempo presente, às pessoas concretas – que não sendo anarquistas são contudo as mais esmagadas pelo Estado e pelo Capital (trabalhadoras/es de baixos rendimentos, imigrantes pobres, sem-abrigo, desempregad@s e precári@s, moradores de bairros sociais e de habitação degradada, poluíd@s, etc.).
Inclusive, não raramente, quem manifestasse nalguns meios libertários a necessidade d@s anarquistas se estruturarem, de se organizarem e de se ligarem aos movimentos populares – ou mesmo de os (re)animarem – era prontamente apelidado por alguns de “leninista” ou de querer ser “missionário dos pobrezinhos” ou de ter “contráido o síndrome de favelado” (versão mais recente…), tão arrogantemente desconhecedores ou aristocraticamente esquecidos de referenciais anarquistas como Bakunine, Louise Michel, Reclus, Ema Goldman, Malatesta, Durruti, Neno Vasco, Manuel Joaquim de Sousa, Mário Castelhano, Virgínia Dantas, Bookchin ou o actual Chomsky alguns (e algumas) estão!
E claro, não se trata de cultuar “santinhos” e “santinhas” mas de ligarmos na nossa actividade HOJE as nossas RAÍZES HISTÓRICAS e os princípios e ética ANARQUISTAS, com a realidade actual, para nos habilitarmos a ENFRENTAR MELHOR O PRESENTE – o processo da Revolução Social – e perspectivarmos melhor o FUTURO (a Anarquia) ou então, como alguém dizia há uns anos, “hoje somos poucos, amanhã seremos ainda menos” – e decerto não é isso que nenhum de nós quer!... A não ser que o nosso “anarquismo” seja só “de salão” ou “de cátedra” (tão útil que esse anarquismo é para alguns na sua carreira universitária – e tão inútil que ele é para a Revolução Social…se não for popularizado! – Lá dizia o Antero Quental, na sua fase anarquista, que “a universidade só há-de iluminar o povo no dia em que lhe pegarem fogo!”…).
A actualidade e algumas perspectivas
Na actualidade, vêm-se verificando alguns sinais de alteração deste cenário miserabilérrimo em que o “movimento libertário” tem estiolado neste canto da Europa :
A criação da actual “Rede Libertária” envolvendo sensibilidades libertárias muito diferentes, a acção conjunta de diferentes colectivos, a sua ligação a algumas movimentações populares (pela habitação, pela dignidade dos imigrantes pobres, pelos direitos dos sem-abrigo, por melhores transportes públicos, etc. ), a revivificação de alguns colectivos que se paralizavam e a criação de novos, são sem dúvida factos positivos.
Porém, corremos mesmo assim sempre o risco de nos diluirmos num activismo cego, sem objectivos e princípios próprios, descaracterizado e extremamente útil aos partidos políticos e demais “movimentos” institucionais reformistas e parlamentaristas (que sempre se tentarão aproveitar do nosso activismo para os seus objectivos próprios de chegar ao Poder e à governação) SE, a par da nossa inserção nas várias lutas sociais (“onde e como for possível”, como dizia o Malatesta) , não formos capazes de criar e desenvolver espaços de aquisição e intercâmbio de novos (e “velhos”!) referenciais e conhecimentos e experiências libertárias (ou seja, aprendermos e usarmos o Anarquismo como ferramenta de luta social).
Tais espaços, com uma dinâmica informativa e de debate mais aberta a não-anarquistas, com base em bibliotecas e arquivos (virtuais ou não) que já existem, são sobretudo os “círculos de estudos – ou culturais – libertários”, que tem desde sempre estado na origem do surgimento de novos grupos e do envolvimento de mais pessoas nas nossas iniciativas – com a condição de serem espaços dinâmicos de debate, auto-aprendizagem e informação RELACIONADAS com o movimento prático e o momento presente e não meras tertúlias burguesas para “passar o tempo” e “medir egos”…
Ora tais círculos – como de resto as várias associações locais e iniciativas onde @s libertári@s estão presentes – não passarão sem a criação de um grupo ou organização, como minoria activa organizada e específicamente ANARQUISTA , (designando-se como tal ou não , mas sobretudo SENDO-O!) que munida, através do estudo, discussão e definição, entre as pessoas afins que a componham, de PRINCÍPIOS, uma ÉTICA, uma TEORIA, um PLANO DE ACÇÃO, uma ESTRATÉGIA e TÁCTICAS * de inserção nas lutas sociais (e mesmo do seu lançamento, pela sua própria iniciativa – intervenção laboral, imigrantes pobres, precári@s, desempregad@s, sem-teto, etc.), discuta e aplique princípios e objectivos anarquistas na sua actividade nos movimentos populares. “Mas então, qual a diferença entre isto e o que os vários partidos “de esquerda” fazem?”, perguntarão alguns… ISTO:
1º Nós estaremos lá NÃO para liderar as luta, conseguir posições de “chefia” e garantir que as controlamos – como fazem os partidos – NÃO para liderar as pessoas e nos colocarmos à sua frente (ou atrás, quando convém a alguns…) mas sim para LUTARMOS OMBRO A OMBRO, AO LADO DAS PESSOAS ATINGIDAS PELOS PROBLEMAS, correndo os mesmo riscos, e velando para que as suas ASSEMBLEIAS sejam de facto SOBERANAS e se pratique nelas a DEMOCRACIA DIRECTA, a LIVRE EXPRESSÃO de IDEIAS e não a “representocracia” de uns quantos.
2º Nós estaremos lá para DIVULGAR E ENSAIAR COM ELAS – se elas o quiserem, claro! (se com elas desenvolvermos relacionamentos de facto solidários e de apoio-mútuo e não discursos apenas) – os princípios libertários de ACÇÃO DIRECTA, AUTO-ORGANIZAÇÃO e AUTOGESTÃO, ANTI-REPRESENTOCRACIA, AUTONOMIA E DESCONFIANÇA RELATIVAMENTE AOS ÓRGÃOS DOS PODERES (políticos e económicos), LUTA DE CLASSES, PARTILHA DE RESPONSABILIDADES ENTRE TODOS, INTERNACIONALISMO, ANTIRACISMO.
Não deveremos negar que desejamos portanto influenciar as lutas sociais com as nossas ideias! Mas porque somos ANARQUISTAS, pretendemos com isso desenvolver as lutas populares no sentido do processo da Revolução Social (como em Chiapas ou em Oaxaca ou na Revolução espanhola ou na Makhnovitchina ) não para “tomar o poder” mas para o esvaziar de sentido e impedi-lo de “governar” – no sentido do que dizia Henry David Thoreau , de que “o melhor governo é o que não governa” e deixa o povo governar-se a si próprio. E isso passa hoje pela criação de AMPLOS E ALARGADOS CONTRA-PODERES POPULARES. Por isso, da perspectiva do ANARQUISMO SOCIAL (que seria uma redundância se não houvesse gente para quem o “anarquismo” é meramente um “estilo de vida”, hedonista e descomprometido das lutas sociais ) a hora é de:
– ORGANIZAÇÃO POPULAR e LUTAS SOCIAIS
– Organização específica ANARQUISTA
Para cada uma destas duas “coisas” os “utensílios” são diferentes mas os objectivos libertários os mesmos:
– para a ORGANIZAÇÃO POPULAR – o sentido de classe, a firmeza de propósitos, o não-sectarismo, o envolvimento nos problemas reais do resto das pessoas (que nos atingem tanto como a elas), o exemplo de uma ética de liberdade, seriedade e autoresponsabilidade.
– para a ORGANIZAÇÃO ANARQUISTA – o conhecimento das ideias, experiências e referenciais anarquistas, a firmeza de princípios, ética e objectivos, o compromisso e a auto-responsabilidade militantes (ou activista, se preferível), a vontade de transformar de facto o mundo actual e não apenas de fazer disso discurso palavroso, a disponibilidade para em conjunto com @s demais companheir@s definir uma estratégia, tácticas e actividades e se empenhar na actividade voluntária, inclusivamente nos movimentos sociais “onde e quando for possível”.
PELA ORGANIZAÇÃO POPULAR – PELO ANARQUISMO SOCIAL – PELA REVOLUÇÃO SOCIAL -
VIVA A ANARQUIA!
Grupo Anarquista “SOCIAL” - gransocial chez gmail.com
(Pró–“Rede Libertária” e pró–“UNIÃO ANARQUISTA LUSÓFONA”)
Porto – Maio 2008
* palavras com uma terrível “conotação guerreira” para alguns… cujo significado no entanto não se importam nada de usar em jogos como o xadrês…